O Funeral Divertido, de Ludmila Ulitskaya, apresenta uma amplitude e coesão únicas. Nas páginas deste romance, desdobram-se as narrativas das figuras que cercam o leito de morte de Álik: Irina, o seu primeiro amor; T-shirt, a filha adolescente do casal; Nina, a parceira atual; e Valentina, a amante. A história se passa em Nova Iorque, no verão de 1991, e é claro que a vida de Álik está em seu ocaso. Esta aglomeração de pessoas, que promete complexidade, inclui também amigos do passado e recém-chegados da comunidade russa, que utilizam o lar como um ponto de encontro para os exilados russos.
A dinâmica da ação parece se estruturar a partir da cama onde Álik repousa, envolvendo até o padre e o rabino que disputam seu encaminhamento espiritual, conferindo um tom quase teatral à maneira como a narrativa se desenvolve – e uma pitada de comédia, ou tragicomédia, que permeia o texto. Por meio das vozes narrativas das quatro figuras mencionadas, a autora tece uma rede reveladora, apresentando não apenas seus próprios contextos e vivências, mas também a figura de Álik. Cada uma observa-o sob uma perspectiva distinta, enriquecendo assim a imagem do homem cercado por essas mulheres, uma vez que essas narrativas trazem à tona o contexto e a complexidade das relações que ali se formam. Consequentemente, a atmosfera é carregada de tensão.
O romance, embora breve, possui um ritmo dinâmico devido à sua estrutura narrativa. A autora opta por uma abordagem fragmentada, pulando entre vozes e perspectivas, o que intensifica a imersão na psicologia de cada personagem. Ao contemplar tudo – e Álik – sob diversas óticas, a complexidade da trama aumenta, assim como a sensação de proximidade com a narrativa e os personagens. Ao mesmo tempo, essa alternância de pontos de vista enriquece cada cena, proporcionando uma visão abrangente do que levou àquele momento decisivo.
Obra: “Funeral Divertido”
Autora: Ludmila Ulitskaya
Tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra
Editora: Cavalo de Ferro
Páginas: 128
A morte é o motor deste livro, destacando-se não apenas como o ponto de convergência das tramas, mas também como catalisadora de reflexões sobre a existência. Nos últimos momentos de um homem – figura central para os personagens, por diferentes razões, no passado e presente – desvela-se a vida como ela é, incluindo temores, arrependimentos e esperanças. Ulitskaya escolhe uma situação e, a partir dela, descreve a experiência humana, não hesitando em entrelaçar elementos e explorar os pensamentos ou emoções das personagens. Esse conteúdo flui de forma natural na narrativa, onde eventos sérios não são tratados com pompa. Ao contrário, o tom permanece quase sempre humorista, e a autora opta por manter leveza nos detalhes, engajando o leitor numa leitura apressada. A escolha por uma narrativa dinâmica contribui para essa sensação, com uma estrutura que instiga, onde as histórias se interligam, levando o conhecimento de uma mente a outra.
A noção de exílio também é central na trama, com a multiplicidade de significados que a acompanha. Serve como um eixo a partir do qual se estabelecem identidades e relações, desde a saudade da terra natal até a adaptação a um novo ambiente e à criação de uma comunidade no exterior, que gera um sentido de pertencimento. Ulitskaya ilustra o exílio como um fenômeno interpessoal, mais que uma vivência solitária, sempre na sua dinâmica coletiva, mesmo quando a narrativa foca em um único indivíduo.
O ano de 1991, no qual se aproxima a morte de Álik, não é meramente um pano de fundo, mas funciona como uma metáfora para o colapso da política internacional tal como era conhecida: um novo sistema político emergia enquanto outro desaparecia. O paralelo entre o que se desenrola na história e o contexto histórico é inegável: à beira da morte, o indivíduo força aqueles ao seu redor a confrontarem seu passado, seu futuro e, acima de tudo, a sua falta. Contudo, após a leitura, as questões relativas às tensões familiares são as que mais ressoam, aquelas que oscilam entre o trágico e o cômico, com a autora mantendo sempre uma abordagem direta, rejeitando sentimentalismos e a lamentação da dor. Enquanto desenvolve seu texto, revela as sutilezas das interações, ao mesmo tempo que expõe as tensões e ressentimentos que permeiam as relações. É impressionante como um espaço tão contido pode estar repleto de significados, seja histórico, político, familiar ou amoroso. A partir de uma família central, a prosa ganha voo, expandindo-se globalmente. O humor é empregado com sutileza, presente de forma constante, realçando até os momentos críticos. Mesmo nesses instantes, a profundidade emocional que Ulitskaya transmite é visível, com uma escrita clara, fluida – uma prosa que evita excessos, sendo exclusivamente essencial. O romance é ágil, a leitura rápida, e dentro de um apartamento em Nova Iorque pulsando a vida em toda a sua plenitude.
A autora utiliza o antigo acordo ortográfico.
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