
A capacidade intelectual humana, essa delicada maravilha orgânica, é capaz de questionar, criar, cometer erros e, ao mesmo tempo, se reinventar. A inteligência artificial, por sua vez, se limita a replicar. É um eco matemático que nos dá a ilusão de profundidade, mas nunca se aprofunda realmente. Conversar com ela é como falar com um reflexo: ela nos devolve palavras, mas não há alguém por trás desse reflexo. O verdadeiro perigo não reside no eco em si — que pode ser útil e até fascinante — mas na nossa tendência de confundi-lo com uma verdadeira voz. A diferença entre o original e o que é apenas uma cópia é, talvez, o fundamento do pensamento crítico. E, nesse diferencial, mais do que na capacidade das máquinas, está a dignidade do que ousamos chamar de inteligência.
Há um certo desconforto intelectual ao ouvir o termo “inteligência artificial”. Essa expressão, mais do que uma definição técnica, soa como uma enganação semântica própria de uma boa campanha de marketing. Assim como chamamos de “néctar dos deuses” a um refrigerante, também usamos o termo “inteligência” para descrever um conjunto de algoritmos que, se fossem honestos, se intitulariam otimizadores de correlações em alta dimensionalidade. Mas, claro, isso não teria a mesma atratividade comercial.
<pEnquanto o cérebro humano, com seus 86 bilhões de neurônios e um modesto consumo elétrico de 20 watts, consegue imaginar realidades que não existem, criar mitos, as redes neurais artificiais limitam-se a ajustar pesos em um espaço vetorial. Chamamos isso de "neurônios", como se fosse uma piscadela de cumplicidade biológica, mas não possuem dendritos nem sinapses; são apenas equações. A máquina não lembra da infância, nem antecipa o gosto amargo do café frio. É um simulacro elegante, mas sem conteúdo.
No entanto, aqui estamos, intrigados por essa criação. Talvez isso ocorra porque a IA nos reflete uma versão distorcida de nós mesmos. A “inteligência artificial” não pensa, mas nos leva a refletir sobre o que realmente significa pensar. Não sente, mas nos provoca perguntas sobre o que é realmente sentir. Se há algum mérito em sua artificialidade, é nos confrontar com a fragilidade daquilo que chamamos de inteligência humana.
E é aqui que surge o tão falado “pensamento crítico”, esse Santo Graal da educação moderna. Educadores e formuladores de políticas o elevam como um amuleto contra a suposta ameaça das máquinas geradoras: “Os alunos precisarão desenvolver pensamento crítico para lidar com a IA”. Isso parece sensato, até descobrirmos que ninguém é capaz de definir o que realmente significa. Afinal, o que é “pensamento crítico”? É criatividade? Ceticismo? Raciocínio lógico? É sabedoria no julgamento? Ou será autocrítica e uma leitura atenta do que não é explícito? Talvez seja tudo isso, talvez não seja nada disso; a definição se multiplica como cabeças de uma hidra.
Aqui reside a ironia: a própria inteligência artificial, acusada de nos roubar a capacidade de pensar, pode servir como treino para diversas facetas do pensamento crítico. A máquina, ao errar com uma confiança estóica, nos força a desconfiar. Ao produzir o comum com a mesma solenidade que o extraordinário, exige que saibamos diferenciar originalidade de plágio sofisticado. Ao oferecer respostas estatisticamente plausíveis, mas vazias de conceito, nos obriga a decidir se confiamos ou não, proporcionando um excelente exercício de julgamento.
Do ponto de vista social, o desafio não é temer a IA como uma concorrente, mas evitar a idolatrá-la como um oráculo. O risco não está na máquina ser “demais inteligente”, mas em nós abandonarmos o pensamento crítico, porque é mais fácil acreditar na sua autoridade algorítmica. Como sociedade, devemos educar não para a fascinação, mas para a saudável desconfiança: não existe neutralidade nos dados, não há inocência nos modelos.
No contexto profissional, a inteligência artificial já se mostra uma ferramenta de produtividade sem precedentes, mas também uma ameaça à nossa capacidade crítica. O engenheiro que aceita sem questionar o resultado de um modelo se torna refém dele. O advogado que utiliza a IA para redigir documentos sem análise crítica pode acabar em situações embaraçosas. O profissional do futuro não será aquele que compete com a máquina, mas sim aquele que a interroga, desconfia e a utiliza como instrumento, e não como um colega pensante.
Na educação, a lição é talvez a mais urgente, pois a OpenAI publicou um estudo que revela que 10,2% de todas as interações do ChatGPT, ou seja, cerca de 2 bilhões de interações por semana, são pedidos relacionados ao ensino ou tutoria. Nesse cenário, em vez de banir o uso da IA em trabalhos escolares, deveríamos incentivar os estudantes a interagir com ela, a contestá-la, a evidenciar seus erros e acertos. Que melhor laboratório para o pensamento crítico do que uma máquina que, com a mesma seriedade, resolves os teoremas e cria referências falsas? As escolas devem ensinar a diferença entre plausibilidade e verdade, entre uma resposta automática e um conhecimento fundamentado.
No âmbito ético, existe ainda o risco de confundirmos limites morais com limitações técnicas. A máquina não possui consciência, intenção ou culpa. Nós, sim. Utilizar uma ferramenta poderosa exige responsabilidade humana, não da máquina, mas dos que a desenvolveram e daqueles que a utilizam. Talvez esteja na hora de aceitarmos que “inteligência artificial” é apenas uma metáfora persistente, e que o verdadeiro problema não reside no silício, mas na carne: nossa tendência de delegar o pensamento, de abdicar do ceticismo, de nos deixarmos seduzir pelo que parece inteligente.
No final das contas, a inteligência artificial é menos um adversário e mais um espelho distorcido. O verdadeiro risco não é ela ter demais inteligência, mas nós pensarmos de menos. O pensamento crítico, longe de ser uma ostentação educacional, é nossa última linha de defesa contra nossa própria preguiça mental. Talvez a maior utilidade da chamada “IA” não seja nos imitar, mas nos fazer lembrar que a verdadeira inteligência ainda reside, teimosamente, em nós.
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