
Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog&Autor
Atualmente, vivemos uma época intrigante. Nunca houve tanta informação, tantas imagens e tantas vozes, mas a necessidade de proteger o que nos define como seres humanos nunca foi tão urgente: a interação, as expressões faciais, os gestos. O Papa Leão XIV, em poucos meses de seu pontificado, tornou-se símbolo de uma necessidade que afeta tanto fiéis quanto não fiéis: a ética da presença em uma realidade cada vez mais digitalizada.
Ao recusar usar um avatar de inteligência artificial para audiências virtuais, ele não apenas fez um gesto simbólico. Ele abordou o aspecto sensível da nossa cultura digital: a tentação de considerar que a simulação pode substituir a realidade. Qual é o propósito de um Papa feito de código e pixels? A retórica da eficiência tecnológica afirma trazer mais alcance, reduzir deslocamentos e aumentar a rapidez. Porém, isso se dá em detrimento de algo que o próprio pontífice defende como crucial: a autenticidade do encontro. No fundo, ele nos lembrou de uma verdade simples e radical: existem experiências que não podem ser confiadas a um algoritmo, pois um olhar não pode ser programado e uma presença não pode ser compilada.
A luta contra os deepfakes segue essa mesma lógica. Não se trata apenas de proteger a imagem do Papa, mas de expor uma cultura onde a verdade é cada vez mais maleável e se transforma em mera ficção convincente. Estamos vivendo uma era onde a confiança se torna vulnerável, desgastada por realidades artificiais que se confundem com a realidade. Nesse contexto, a mensagem do Papa ressoa para todos: sem autenticidade não há relações, sem verdade não há confiança, e sem confiança não há comunidade.
Contudo, o Papa não se limita a criticar. No Dia Mundial das Comunicações, ao sugerir o tema “Preservar vozes e rostos humanos”, ele se insere em uma tradição profética: assim como Leão XIII alertou sobre os riscos sociais da industrialização, Leão XIV adverte sobre a desumanização na era digital. As máquinas não precisam de rostos; nós precisamos. A eficiência algorítmica não requer silêncio; nós precisamos. A lógica técnica não necessita de conexões humanas; nós precisamos.
É aqui que suas palavras reverberam em nossa vida cotidiana, não apenas no contexto eclesial. Ao afirmar a médicos que “a inteligência artificial nunca poderá substituir o médico”, ele tocou em um ponto que é compreensível para todos. No cuidado, o essencial não é apenas o diagnóstico ou a terapia, mas o gesto de proximidade. Esse gesto — uma mão no ombro, um olhar acolhedor, uma escuta atenta — é o que humaniza a técnica e transforma a medicina em cuidado. A inteligência artificial pode processar dados, mas não tem a capacidade de amar. E o amor é essencial para a nossa humanidade.
A posição de Leão XIV é clara: não é uma rejeição da tecnologia, mas um discernimento crítico sobre suas limitações e possibilidades. Não se trata de descartar algoritmos, mas de reconhecer seu papel como ferramentas, não como fins em si mesmas. Não se trata de ansiar por um passado anterior à era digital, mas de lembrar que o futuro só será verdadeiramente humano se mantivermos o coração no centro. Em um mundo que valoriza cada vez mais a rapidez, Francisco e agora Leão XIV nos convidam a valorizar a pausa; em uma época que idolatra a produtividade, nos recordam a fertilidade do silêncio.
Aqui surge nossa responsabilidade. Se os algoritmos tendem a automatizar as relações, cabe a nós humanizá-las. Se a cultura digital promove uma distração constante, é nossa tarefa cultivar a atenção. Se a pós-verdade ameaça dissolver a confiança, é nossa responsabilidade semear o discernimento. A sabedoria do coração, mencionada também na recente Antiqua et Nova, é o contrapeso que necessitamos: conectar o todo às partes, o eu ao nós, a técnica à ética, a rapidez ao sentido.
O argumento contrário é previsível: “mas a tecnologia aproxima, democratiza, oferece acesso”. E isso é correto. As redes diminuem distâncias, a inteligência artificial abre novas oportunidades de cuidado, a informação circula como nunca antes. O perigo, no entanto, não reside no acesso, mas no excesso; não no uso, mas no abuso; não na potência, mas na distorção. Por essa razão, a mensagem do Papa se levanta não contra a tecnologia, mas contra o determinismo tecnológico que tenta nos aprisionar a uma lógica fria de eficiência.
O legado de Leão XIV começa a se delinear como uma ética da presença na era da cibercultura. Uma presença que não é simplesmente estar conectado, uma autenticidade que não se confunde com o desempenho nas respostas de mensagens do WhatsApp, uma proximidade que não se resume a um emoji digital. Esta perspectiva não é apenas pastoral, é profundamente humana e cultural. Ela nos desafia a construir pontes reais, recuperar rostos e restaurar à comunicação sua vocação primordial de ser encontro.
Em um futuro saturado de algoritmos e avatares, talvez a revolução mais ousada seja a escolha de ser-presença, quando tudo nos convida a ser simulação.
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