O autor esquecido Milan Kundera uma vez afirmou que as bandeiras são o que separa a direita da esquerda. As bandeiras simbolizam causas, e a esquerda possui múltiplas que frequentemente se alteram.
No período em que ser um intelectual estava alinhado com ser de esquerda, e onde afirmar-se como tal muitas vezes significava não ser comunista, o cenário era claro: os proprietários dos meios de produção eram os opressores, enquanto aqueles que trabalhavam para os outros eram os oprimidos; os intelectuais eram responsáveis por iluminar as massas sobre a inevitável marcha rumo à igualdade, sendo os EUA as forças do mal e diversos regimes favoráveis como a URSS, China, Coreia do Norte, Albânia, Vietnã do Norte, Cuba e outros aos quais se poderia aderir conforme a preferência.
Esse mundo, anteriormente tão nítido, desmoronou com a queda do Muro de Berlim. E ainda antes, eventos como os julgamentos de Moscovo, a invasão da Hungria, o Holodomor, as exposições de Khrushchov, as loucuras de Pol Pot, o Grande Salto Para a Frente de Mao, entre muitos outros episódios da tragédia comunista do século XX, haviam levado inúmeros intelectuais comunistas a se distanciar e a buscar abrigo na social-democracia.
Nem todos, porém. Alguns precisaram passar por 10 tragédias, outros por 15 ou até mesmo 54. E, embora a expectativa fosse que ninguém ficasse, muitos permaneceram, defendendo a ideia de que a igualdade material entre os cidadãos é o bem supremo e que a monstruosa hidra do capitalismo tem diversas cabeças, todas monstruosas, mas que pode ser domesticada se realizarmos correções democráticas em suas falhas, até que se converta em um símbolo de paz. E se não é por meio de revoluções, já que os operários não existem mais e a população demonstrou apreço por eleições, devemos nos dedicar ao campo dos sentimentos. Embora no depósito de relíquias estejam as ditaduras do proletariado, a propriedade coletiva e as vanguardas, a pobreza (pelo menos de forma relativa, já que não morrem mais de fome, mas suspiram ao ver as vitrines com comida gourmet) persiste, assim como os ofendidos de várias origens, reais ou imaginários, e todas as injustiças que apenas o Estado possui a responsabilidade de corrigir, desde que seus representantes adotem as políticas adequadas.
Como, então, proceder? É preciso estabelecer um ambiente de moralidade pública em que a desigualdade se torne um adversário a ser eliminado e a igualdade um objetivo louvável, embora não se se chame de igualdade, mas sim de justiça social. Isso é bastante prático: por exemplo, quem pleiteia aumento de impostos está a favor da justiça. E para que serve o aumento de impostos? Para redistribuir, um ato que só pode ser realizado através de agências estatais, que se ampliam de maneira virtuosa, robustecendo-se ao impor comportamentos regulados de forma quase religiosa, como em questões relacionadas ao meio ambiente e à saúde.
Embora isso não seja mal visto, está longe da perfeição. O curso dos eventos tende a desviar, pois há poucos a financiar muitos a receberem, e a mídia, em determinado ponto, começa a saturar a atmosfera com estatísticas que todos já conhecemos (antes havia apenas um handful de médicos, agora também temos economistas), sobre taxas de crescimento, inflação, desemprego e outras crises. Além disso, há países à beira da falência, de modo que, antes de eliminar os ricos para garantir que todos fiquem confortáveis, os primeiros geralmente conseguem se salvar enquanto os outros ficam em situações muito piores. O regime democrático e a liberdade de expressão permitem quebras de normas, mas não possibilitam a completa desintegração e, em algum momento, o que se busca é uma solução.
Assim, surge a frustração: subsídios, benefícios, apoio, serviços gratuitos, sim, e a nossa esquerda comunista é sempre, com seu coração generoso, favorável; mas déficits e dívidas, que seriam ideais para erigir um novo Estado alternativo sob este, o eleitorado, diante da vigilância dos credores, se opõe.
Ou seja, a história ensinou o eleitor a não querer erradicar totalmente o patrão, o rico, o opressor. E essa lucidez tornou-se tão clara que a esquerda comunista (incluindo filhos, primos e afilhados, pois é uma vasta parentela) enfrenta escassez de apoiadores. É aqui que entram os imigrantes, os adeptos de sexualidades não convencionais (o coletivo LGBTurbo), pessoas que se autodenominam descendentes de escravos, e até mulheres, consideradas vítimas do heteropatriarcado nocivo, exceto quanto a algumas que, surpreendentemente, se revelam feministas com visões de direita, deixando a Deus ou ao Diabo a tarefa de entender.
Novos grupos, como se pode perceber, mas divergentes do operário disciplinado de outrora: derrubar uma estátua que simboliza a opressão branca não é exatamente o mesmo que organizar uma greve, mas cada pequena vitória conta.
Todos somos cidadãos, com qualidades e defeitos, e os considerados bons tendem a ser aqueles que antes brandiam o ideal de futuros promissores e os considerados maus são, basicamente, os mesmos de sempre. O mesmo se aplica às nações. E temos diante de nós a situação de Israel, uma democracia isolada em um oceano de ditaduras, onde pessoas afluentes transformaram um deserto em um paraíso, apoiados pelo Grande Satã e pela diáspora judaica, ao lado de empobrecidos que não conseguiram transformar a terra que lhes coube em nada profícuo, pois a assistência recebida de todos os lados foi desviada para túneis, mísseis e armamentos, com energia expendida não na construção, mas em um conflito perene.
Entre os dois extremos, entre pobres e ricos, entre o americano e o árabe (cada vez menos, pois agora o escopo do revolucionário terceiro-mundista é mais persa, mas não vamos complicar), entre Netanyahu e algum Ali, a esquerda (definindo-se como comunista, mas envolvendo o resto que é barato apoiar quem está em desvantagem) deveria apoiar quem?
Dar apoio é uma expressão que precisa ser analisada. Usar um keffieh e ir passear de barco no Mediterrâneo é uma ótima ação de marketing, não muito diferente de lançar uma lata de tinta em uma pintura para protestar contra a indústria petrolífera, mas isso não muda a essência do conflito nem altera o resultado da guerra. O que os viajantes transmitiram foi o seguinte: Protestamos porque existimos e, dado o que existe, somos a elite; e o que as pessoas perspicazes perceberam foi que, ao protestar, eles confirmam sua existência.
Dessa forma, sobre as intenções reais da viagem, quem a organizou e quem apoiou, e que lado é digno de apoio, não se comunicou, pois vozes mais eloquentes do que a minha, incluindo este jornal, já discutiram exaustivamente por que se deve estar ao lado de Israel. Quanto a mim, vi apenas o lado cômico da viagem, a inexistência de apoio humanitário, a duração, as canções a bordo, a vitimização em face de uma recepção que foi mais do que tolerante em um cenário de guerra, as contorções legais em torno do direito internacional adaptado às circunstâncias, e me envolvi de tal forma em piadas de mau gosto nas redes sociais que experimentei um leve afeto: é complicado aborrecer aqueles que nos fazem rir.
Um erro meu, peço desculpas. Pois uma guerra não é uma obra de teatro ou um filme: civilizações inteiras perderam vidas, mas isso não impediu que Chaplin zombasse de Hitler. No caso, Hitler é quem deflagrou o conflito com um ataque brutal e mantém um campo de concentração subterrâneo onde tortura e extermina aleatoriamente prisioneiros cuja única culpa é serem… Judeus.
Nota editorial: As opiniões expressas pelos autores dos artigos publicados nesta coluna podem não ser completamente aceitas por todos os membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente a posição da Oficina da Liberdade sobre os assuntos tratados. Apesar de compartilharem uma visão comum sobre um Estado menor e um mundo mais livre, os membros da Oficina da Liberdade e seus autores convidados podem não concordar na melhor maneira de alcançar tais objetivos.
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