
Por ter passado as últimas quinze primaveras da sua existência como eremita na Serra da Arrábida, imaginamos Frei Agostinho da Cruz (1540-1619) caminhando pelas montanhas e retornando a casa para redigir poesia mística. Porém, essa não era sua única atividade. Até mesmo os eremitas necessitavam de colher frutos, aparar a barba e eliminar resíduos. Ao conceber o labor dos poetas, frequentemente desconsideramos essas ocupações, preferindo crer que o contato com a natureza é que inspira os versos de maior qualidade.
Atualmente, acredita-se que a maior parte da obra poética de Frei Agostinho tenha sido composta antes de suas caminhadas pela Serra da Arrábida. O que sabemos genericamente sobre a trajetória de um poeta influencia, no entanto, a forma como analisamos sua poesia. Assim, quando em uma elegia Agostinho se coloca a fazer indagações “ao mar, às ondas, aos rochedos”, somos levados a registrar os ecos da serra fatal, mesmo que ele ainda não tivesse pisado lá; e não consideramos, por exemplo, que suas indagações às ondas pudessem remeter a versos abstratos de poetas do interior.
Mesmo ao imaginar Frei Agostinho passeando pela natureza e travando diálogos, a logística dessa conversa não parece simples. A natureza nunca responde aos poetas, nem a ninguém. A mais bela elegia de Frei Agostinho aborda exatamente essa questão: pode haver poesia gerada por “coisas mudas dialogando”? Inicialmente, temos uma versão edificante: “Se pelejo, se grito, se contenho / Com armas, com razões, com argumentos, / Elas só com calar ficam vencendo.” Nessa abordagem, contra a mudez das “coisas mudas” não há razões; e a natureza prevalece sobre tudo.
Entretanto, o poema chega a uma conclusão diferente. Indignado com a temática de sua poesia, Agostinho afirma, “Fico fora de mim, fico corrido / De ver sobre que fiz meus fundamentos” (o termo “corrido” queria nesta época significar quase o mesmo que ‘envergonhado’). Essa vergonha poderá ter envergonhado o poeta da natureza; e compreende-se seu estado de fora de si: apesar de sua maestria técnica, há uma espécie de mania na ideia de arrancar “mil segredos” da natureza, de tentar, como ele escreve, recortar “letras primeiras . . . / Nos pés de outros mais verdes arvoredos.”
Não se sabe quais arvoredos são esses; e na metáfora percebe-se o ferro forjado. Contudo, a vergonha de quem foi flagrado extraindo poemas da natureza, como alguém surpreendido a remover um dente do siso, é sintoma de uma outra realidade. Os filósofos denominam isso de vergonha epistémica: o desconforto de quem se deu conta de que aquilo em que confiava não era seguro. Frei Agostinho da Cruz não precisou ir à Arrábida para perceber que temos demasiada fé na natureza. Seu poema sustenta que da natureza não provém nem bom vento nem bom alicerce; mas, sendo uma elegia, não deixa de lamentar um pouco essa perda de confiança.
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