cropped-radiocMadeira-logo-removebg-preview
HomeEconomiaNem tudo é produto: do tempo aos terrenos devolutos

Nem tudo é produto: do tempo aos terrenos devolutos

Por Carlos Lourenço, Docente do ISEG Na disciplina da economia, as ineficiências de mercado podem ser entendidas como escolhas individuais
Nem tudo é produto: do tempo aos terrenos devolutos

Por Carlos Lourenço, Docente do ISEG

Na disciplina da economia, as ineficiências de mercado podem ser entendidas como escolhas individuais que se manifestam em preços que não consideram devidamente os efeitos sobre terceiros, ou seja, aqueles que não estão diretamente envolvidos na compra e venda. Um exemplo claro disso é observado no setor dos combustíveis, como a gasolina. De maneira simplificada, os preços não captam o impacto adverso que os combustíveis fósseis têm sobre as comunidades, especialmente no que toca a suas repercussões ambientais.

O desafio dessa definição reside na ambiguidade de quem são esses terceiros, pois não há como evitar que as decisões pessoais afetem os outros. Além disso, o efeito sobre terceiros pode ser retardado no tempo ou se manifestar nas futuras gerações, cujo bem-estar, em relação a outros tópicos (como heranças ou aposentadorias), já é considerado pelos indivíduos de hoje. Portanto, como podemos, por definição, deixar de avaliar os mercados como uma ineficiência?

Se partirmos do princípio de que as mudanças climáticas são uma realidade e são consequência do notável avanço tecnológico que se intensificou desde a Revolução Industrial na Grã-Bretanha, espalhando-se significativamente ao longo do século XX, e se considerarmos que, em última análise, essas mudanças podem ameaçar a sobrevivência humana na Terra, especialmente devido ao aquecimento global provocado pelas emissões de gases de efeito estufa, essa externalidade extrema revela, se não uma falha de mercado ampla, pelo menos a falha do mercado das emissões, que Nicholas Stern, ex-economista-chefe do Banco Mundial, descreveu em 2007 como “a maior falha de mercado” de todos os tempos.

O planeta é um recurso coletivo, ou, para evitar soar como um discurso numa reunião alternativa, vamos ser mais diretos e dizer que o ar é um recurso comum. O ar é um bem público, pois não se pode estabelecer um mercado de ar puro ao ar livre, uma vez que é impossível excluir alguém de acessar o ar livre que não pagou por isso (o ar é, tecnicamente, não-excludente), e a respiração de uma pessoa não impede outra de respirar (o ar é, tecnicamente, não-rival). A não ser que alguém acredite que podemos viver em uma distopia onde todo o ar está poluído, utilizando continuamente, em qualquer lugar, um sistema de respiração artificial.

Essa distopia ignora, como acontece frequentemente com os argumentos que defendem o mercado a qualquer custo, não pelo mercado em si, mas pela atraente retórica da liberdade individual acima de tudo, ignora, como eu disse, aquilo que não está imediatamente visível, ou seja, o que não é objeto de troca: as plantas, os animais e a própria luz solar. O que faríamos com todos esses elementos? Como viveríamos sem eles?

É possível que alguns considerem, seriamente, a possibilidade de chegarmos a tais distopias (que não se diferem em nada da colonização de Marte, por exemplo), caso essa seja a única alternativa, como se isso fosse uma inevitabilidade decorrente da natureza humana, o ser superior a todos os outros.

Entretanto, o mercado não é a única solução disponível, evidentemente.

Para além da regulação ou das medidas governamentais, que são imperfeitas e não operam com as chamadas “mãos invisíveis”, existe, por exemplo, a gestão comunitária, como demonstrou incansavelmente Elinor Ostrom, ganhadora do Prêmio Nobel de Economia em 2009, por meio de suas pesquisas ao longo de várias décadas em diversas comunidades ao redor do mundo.

Um exemplo disso, entre muitos outros, são os sistemas de irrigação comunitária na Indonésia e, em Portugal, os terrenos baldios, que existem principalmente nas regiões Norte e Centro do país. Essas terras não pertencem ao estado nem a indivíduos, e, rigorosamente, não são de nenhuma comunidade (a questão central é, de fato, uma questão de propriedade). Sem um proprietário, essas terras, assim como outras no passado, são geridas pela própria comunidade que nelas reside e delas obtém (ou obtinha) seu sustento, assegurando sua sustentabilidade. Mas como pode essa característica única persistir se as próprias comunidades estão desaparecendo?

Devido a essa ameaça, há uma crescente pressão para concessão dessas terras a entidades privadas, ou seja, empresas. Com frequência, essa pressão se baseia na argumentação de que, na ausência de populações, com o fim das comunidades, a concessão é a única forma de preservar essas terras, a floresta e, dessa forma, enfrentar eficazmente o problema dos incêndios.

Contudo, uma transformação do mundo pode se dar por meio da mudança da nossa realidade, e talvez uma solução para a encruzilhada global em que nos encontramos seja o desenvolvimento e aprimoramento de modelos cooperativos de organização coletiva e comunitária para aquilo que nunca poderá ser objeto de transação nos mercados, como já ocorre há séculos com os baldios.

Logo (3)

Todas as manchetes e destaques do dia do radiocMadeira.pt, entregues diretamente para você. Change the color of the background to the green indicated previously and make it occupy all the screen widely.

© 2025 radiocmadeira. Todos os direitos reservados

radiocMadeira.pt
Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.