
Portugal tem tido o hábito de avaliar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) com base nas urgências. Isso pode parecer lógico, mas é enganoso. A verdadeira saúde do SNS deve ser medida pela capacidade de fornecer um médico de família a cada cidadão, pelo cumprimento dos tempos máximos de resposta garantidos (TMRG) e pela proteção financeira das famílias. Em 2025, os sinais são mistos: os gastos públicos aumentam, mas a execução revela desequilíbrios; a integração nas Unidades Locais de Saúde (ULS) avança, mas o número de utentes sem médico de família voltou a crescer nos últimos meses; e os períodos de espera, especialmente na oncologia, continuam falhando no essencial: tempo é prognóstico.
A reforma estrutural mais significativa foi a criação abrangente das ULS (31 novas a partir de 1 de janeiro de 2024), unindo cuidados primários e hospitalares, assim como cuidados continuados, sob uma única gestão. A promessa é correta: proximidade, continuidade e gestão única do percurso clínico. O desafio é traduzir essa estrutura em resultados clínicos mensuráveis: menos internações evitáveis, alta precoce com apoio em domicílio e consultas rápidas pós-alta. Sem métricas e autonomia real, a integração corre o risco de ficar apenas no organograma.
No que diz respeito ao financiamento, o Estado aumentou as transferências para o SNS em 2025 em relação a 2024, mas a execução trimestral ainda mantém “o vermelho” nas contas e a necessidade de reforços extraordinários (200 milhões para regularização de pagamentos a ULS e IPOs em julho). Mais dinheiro sem previsibilidade e sem gestão do gasto é areia movediça; e, com a despesa em saúde aumentando mais do que o PIB em 2024, a pressão estrutural não vai desaparecer.
Os cuidados de saúde primários continuam a ser a base. Em dezembro de 2024, a cobertura de utentes com médico de família era de 85,4%. No entanto, em maio e junho de 2025, o número absoluto de utentes sem médico voltou a aumentar, atingindo os níveis mais altos do ano, refletindo uma combinação de aposentadorias, mobilidade e um “choque demográfico” com o aumento rápido da população imigrante. Ou seja: a entrada de novos utentes está crescendo, enquanto a rede perde capacidade por vazamentos previsíveis.
Os tempos de espera apresentam uma imagem igualmente alarmante. O regulador indicou que os TMRG não foram cumpridos em 26,4% das cirurgias no 1.º semestre de 2024 e, em oncologia, quase 80% dos pacientes aguardando a primeira consulta no 2.º semestre de 2024 ultrapassaram os prazos legais. O atraso em oncologia não é apenas uma “experiência negativa do paciente”; é a perda de anos de vida ajustados pela qualidade.
E onde estão as famílias? Apesar dos esforços públicos, a saúde tem um impacto significativo nos orçamentos familiares, comparável ou superior a muitos de nossos parceiros europeus: realidade ainda mais inadmissível quanto menor for a previsibilidade da resposta pública.
O problema não é ideológico; é de execução. Há três áreas onde o SNS pode ganhar impulso em 12-24 meses sem a necessidade de reescrever a Constituição.
1) Contratos baseados em resultados, não em produção
Plurianalidade e compartilhamento de risco. Os contratos-programa das ULS devem ser plurianuais (3 anos), com 70% do financiamento baseado na capitação ajustada ao risco e 30% baseado em resultados (TMRG cumpridos, readmissões, controle de doenças crônicas, mortalidade evitável). Bônus orçamentais devem ser concedidos apenas com “ganhos em saúde” comprovados e auditoria externa. Os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) já possuem infraestrutura para monitoramento; falta conectar o financiamento a indicadores que são relevantes para os pacientes.
Orçamento à prova de “picos” administrativos. Reforços extraordinários (como o de julho) devem ser transformados em mecanismos automáticos de estabilização: quando a produção cirúrgica adicional reduz as listas em X% trimestral, uma parte contingente deve ser liberada; quando falha, o montante deve ser convertido em “vouchers” temporários regulamentados para o setor social/privado, com um teto de preço e critérios clínicos uniformes.
2) Primários em primeiro lugar: USF “B+”, equipa ampliada e tecnologia que importa
Cobertura universal com equipas, não apenas médicos. A meta de fornecer um médico de família a todos os portugueses não será alcançada apenas com o aumento do número de clínicos. É necessário formar equipes multidisciplinares, com enfermeiros de família, psicólogos, fisioterapeutas e outros profissionais assumindo tarefas específicas, permitindo que os médicos se concentrem no diagnóstico e na decisão clínica. Simultaneamente, é essencial liberar os médicos de fardos burocráticos: registros redundantes, papelada administrativa, tarefas que não exigem formação médica. Cada hora gasta em burocracia é uma hora a menos atendendo pacientes. O que os cidadãos realmente precisam são médicos disponíveis para consultas, não para preencher formulários.
Atração e retenção. É aqui que o SNS precisa de uma mudança de paradigma. Todos reconhecem que é inevitável que muitos médicos também atuem no setor privado, devido à grande diferença salarial. No entanto, é preferível ter um médico dedicando 35 horas por semana ao SNS do que perder esse profissional completamente por exaustão ou desmotivação. A redução da carga horária para 35 horas é uma medida inevitável e viável que permite equilibrar a vida profissional e pessoal e, ao mesmo tempo, criar espaço para manter atividades complementares sem abandonar o setor público.
Além disso, é inaceitável continuar gastando milhões em contratações temporárias de médicos que, muitas vezes, não são especialistas, e que chegam a receber por hora mais do que um especialista integrado. Esse desequilíbrio mina a motivação dos profissionais que sustentam o SNS e cria uma sensação de injustiça entre os colegas. O dinheiro utilizado para médicos temporários deveria ser redirecionado para valorizar aqueles que mantêm contratos estáveis, formam equipes, conhecem os pacientes e asseguram o funcionamento do serviço. Esses profissionais são a espinha dorsal do SNS e precisam ser reconhecidos como tal.
3) Espera clínica zero para percursos sensíveis ao tempo
Oncologia: via verde nacional com “pooling de capacidade”. Centralizar o agendamento da 1.ª consulta oncológica em um “hub” nacional (ou por macro-região), alocando o paciente para o primeiro “slot” clínico disponível em qualquer hospital público qualificado para tratar aquele tipo de tumor e, se o TMRG legal estiver próximo do vencimento, ativar automaticamente a contratação adicional no setor convencionado com protocolos idênticos. É tecnicamente simples e clinicamente crítico.
Cirurgia programada: produção previsível > “mega-maratonas”. O desacato aos TMRG nas cirurgias não se resolve com picos de produção aos sábados. Precisamos de linhas cirúrgicas de alto desempenho funcionando 48 semanas por ano, com equipes dedicadas e blocos “protegidos” (não “desviados” para urgências). Onde a ULS não conseguir garantir uma taxa mínima, deve-se realizar contratações externas a preços justos, sob auditoria de qualidade.
Urgências: da geografia à gravidade. Reconfigurar a rede com base em volume, tempo de resposta do INEM e resultados, não em fronteiras administrativas. Menos portas, mas mais capazes, articuladas com unidades de estabilização e rápido transporte. Isso salva vidas e profissionais.
Governança: autonomia com responsabilidade
A integração das ULS só produzirá resultados com autonomia executiva (gestão de recursos humanos, contratação e investimento até um certo limite) e responsabilização pública. Dois instrumentos são cruciais:
2. Planos de recuperação com metas e consequências: se uma ULS falha os TMRG por dois trimestres consecutivos, deve-se ativar automaticamente um plano de capacidade com financiamento contingente e uso de conveniados, com relatórios mensais. Sem execução, a gestão deve ser alterada. Não se trata de punição; é um respeito pelo paciente.
E as finanças?
O aumento orçamentário precisa de previsibilidade. Em 2025, as transferências para o SNS aumentaram em relação a 2024, mas os pagamentos atrasados exigiram ajustes. O que proponho não é “mais do mesmo”, mas uma mudança de abordagem: contratos plurianuais baseados em risco, linhas de produção contínuas e gatilhos automáticos para quando a oferta pública não atende a demanda. Assim, cada euro investido se traduz em tempo de vida, e não apenas em horas extras tão (des)necessárias.
Conclusão: do organograma ao paciente
O SNS está no meio de uma reforma com um bom desenho, a integração das ULS, mas a execução ainda deixa a desejar. As decisões que tomarmos nos próximos 12 meses definirão a próxima década. Com um financiamento inteligente, cuidados primários fortalecidos e vias rápidas para casos sensíveis ao tempo, é possível oferecer mais saúde, mais rapidamente e de forma justa. Não se trata de público versus privado.
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